segunda-feira, 20 de agosto de 2007

O silêncio de Deus - Vale a Pena Conferir

Frei Betto

Em visita a Auschwitz, o papa Bento XVI fez uma prece que surpreendeu a muitos: “Onde estava Deus naqueles dias? Por que ficou em silêncio? Como pôde permitir esse massacre sem fim, esse triunfo do mal?”
Esta foi a oração de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mateus 27, 46), fazendo eco ao Salmo 22: “Meu Deus, eu grito de dia e não me respondes; de noite, e nunca tenho descanso.”
Nem sempre a nossa oração é de súplica, gratidão ou louvor. Há momentos em que o silêncio de Deus nos incomoda, sobretudo diante do mal praticado e da impunidade. Talvez Ele esteja sugerindo, com esse silêncio, caber a nós reparar a injustiça e evitar o mal. Deus é pai mas não paternalista. “Onde estavam vocês, homens e mulheres de bem, naqueles dias? Por que se omitiram?”
A religião não é para ser crida, é para ser vivida. Mais vale fazer do que crer. Amar ao próximo do que prestar culto a Deus. Mas quem, hoje, prescinde de religião? Como celebrar momentos fortes da vida – nascimento, casamento, morte – sem recorrer a ritos e símbolos religiosos?
Muitos já não buscam a libertação social e política, devido ao ocaso das ideologias progressistas, embora sonhem com um mundo melhor. Agora a libertação cede lugar à salvação. A utopia – situada no futuro da história – é suplantada pela experiência imediata do sagrado.
As instituições tópicas da modernidade estão em crise, como a família monogâmica, a escola e a igreja. Nunca Protágoras esteve tão em moda como nesse primórdio da pós-modernidade. Também quanto à religião os fiéis querem ser a medida de todas as coisas. Rejeitam os canais institucionais de mediação com o divino. Olham desconfiados para instituições aferradas ao equívoco histórico de que sempre coincidem autoridade e verdade.
Daí o êxodo de fiéis das igrejas históricas às variadas manifestações esotéricas. Não estão à procura de doutrina, mas de alívio e soluções a seus problemas existenciais. Não buscam mandamentos, e sim consolos. Não querem o perdão, mas explicação para suas angústias e dificuldades. À promessa de salvação pós-morte preferem o guru capaz de premonição frente ao futuro imediato. Ficarei curado da doença? Meu filho largará as drogas? O amado retornará aos meus braços? Há videntes que garantem, em seus anúncios, a volta em três dias do amor perdido ou a devolução do dinheiro da consulta...
Nas grandes cidades há muita insegurança. O ritmo da vida se acelerou e não bastam pão e pouso para ser feliz. O nível de exigência inclui riqueza, fama e beleza (sobretudo magreza). O ser robótico esculpido pela mídia acentua a baixa auto-estima. Como posso me sentir feliz se tenho dívidas, sou anônimo, desprovido de beleza física e não consigo me conter diante de um caldeirão de gorduras saturadas e uma travessa de doces? Como me sentir bem se estou ameaçado pelo desemprego? E se a política não me dá respostas e as ideologias se calam, onde buscar refúgio senão no esoterismo religioso? Como resistir ao pastor que me promete prosperidade em troca de uma vida menos desregrada e o dízimo pago em dia? Como não se sentir atraído pelo padre que me insere entre os eleitos do Espírito Santo e me faz falar em línguas estranhas?
As igrejas históricas se dividem entre as que ainda não se urbanizaram e insistem nos mesmos arcaicos métodos paroquiais, sem recursos para evangelizar a juventude, os setores profissionais, os movimentos sociais, e aquelas que, atualizadas pela mídia televisiva, “privatizam” a fé, reduzida a um meio de consolo pessoal e identificação do fiel com a sua igreja. Toda a dimensão social encontrada no Evangelho – o compromisso de Jesus com os mais pobres, a crítica aos opressores e vendilhões do Templo, o amor ao próximo que reconhece nos famintos a própria face do Cristo – é ignorada. Assim, a religião exerce, de um lado, o papel de legitimadora da desordem vigente na sociedade e, de outro, induz ao fundamentalismo que acredita na partidarização política da igreja como única forma de salvar a sociedade...
Evangelizar, hoje, é resgatar os métodos adotados por Jesus: antes de proferir o discurso moralista, oferecer o absoluto de Deus, como fez ele à samaritana; antes de exigir adesão à doutrina, propor a opção pelos pobres, como disse ao homem rico; antes de realçar a sacralidade das instituições religiosas, acentuar o ser humano, em especial o faminto, o enfermo e o oprimido, como templos vivos de Deus. E anunciar o Deus do amor e do perdão, e não do juízo e da condenação; o Deus da alegria, não da tristeza; Deus como pão da vida, e não cruz a ser carregada neste vale de lágrimas...
Jung demonstrou como Jesus está presente no inconsciente coletivo do Ocidente. O que explica o sucesso do Código Da Vinci que, supostamente, esclarece a “história da vida privada” de Jesus. Essa tendência à privatização de todos os aspectos da vida, comprovada pelo êxito de publicações que aparentemente fazem o leitor penetrar na intimidade de celebridades, é uma das características da filosofia neoliberal que respiramos em tempos de unipolaridade do capitalismo. Essa voyeurismo exacerbado neutraliza nosso potencial de transformar a sociedade e resgatar a nossa auto-estima como seres ontologicamente políticos, como observou Aristóteles.
Diante da tanta injustiça, não é o silêncio de Deus que deveria nos incomodar, e sim a nossa desmotivação para combatê-la e construir o “outro mundo possível”.

http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia_list.asp?cod_canal=53

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